Priscilla Castro - Repórter - 09 horas: Combinação de quatro comprimidos + uma vitamina C + um ômega 3;- 15 horas: um medicamento para profilaxia de pneumonia e tuberculose + um antifúngico, uma vez por semana;- 16 horas: um antidepressivo;- 21 horas: repete a combinação com quatro comprimidos.Total: treze medicamentos por dia. Essa é a rotina do educador social Ricardo*, infectado pelo vírus HIV. Ele precisa ainda fazer o exame de sangue pelo menos três vezes ao ano e se consultar a cada três meses. Diante da alta capacidade de mutação do vírus, essa disciplina, embora difícil, é fundamental. E é por causa dela, que Ricardo convive com o HIV há 26 anos, com momentos de trabalho e lazer muito bem definidos. Dentre todos os vírus conhecidos, o vírus da imunodeficiência humana (VIH), também conhecido por HIV (sigla em inglês para human imunodeficiency virus) está no ranking dos que possuem a maior habilidade para se transformar dentro do corpo humano. O que significa que, além de poder recombinar das mais variadas maneiras os oito subtipos existentes, o HIV 1 (tipo que predomina na América Latina) também se reproduz em altíssima velocidade: são seis milhões em apenas um minuto.“Eles falam em supervírus ou novos tipos do vírus, mas isso é o mal e velho HIV que se transformou durante o processo de mutação”, disse o médico infectologista, Eugênio França. Segundo ele, a maior limitação para que a maioria dos casos seja como o de Ricardo é a falta de adesão dos pacientes ao tratamento. Muitos não seguem as orientações médicas e acabam com as partículas virais totalmente resistentes aos remédios.Mas não é fácil passar por todo o processo clínico. Além de um bom preparo psicológico para tomar o medicamento todos os dias até o fim da vida e ceder às limitações exigidas, como evitar consumo de álcool e controlar a alimentação, o paciente precisa enfrentar todos os efeitos colaterais. Náuseas, problemas digestivos, falta de memória, alucinações, manchas avermelhadas pelo corpo, pesadelos e o que mais incomoda: a lipodistrofia (transferência da gordura dos braços, rosto e pernas para abdômen e costas). Geralmente, o paciente recebe o medicamento na forma do famoso “coquetel”, que é uma combinação de três ou mais medicamentos para atuar em diferentes partes dessa conexão que o vírus faz com a célula. Mas uma vez dentro do corpo humano, o HIV pode sofrer dois tipos de mutação. A natural, que acontece durante a reprodução normal do vírus. Ou a mutação provocada pela corrente de resistência, que é quando o paciente deixa de tomar os medicamentos da forma adequada e, quando retorna o uso normal, o vírus já não sofre mais a ação do remédio.Lutando contra a doença desde os 17 anos de idade, Ricardo diz que já pensou em desistir. “Além das cinco pneumonias que eu já tive, eu passei por uma depressão muito forte e parei de tomar o remédio durante um mês, mas fui melhorando e voltei a tomar. Já estou na quarta combinação de remédios, porque as outras três que eu tomava já não funcionam mais”, disse. E nesses casos, o preconceito também fala alto. Ricardo conta que, quando era professor, alguns pais de alunos chegaram a mudar os filhos de sala quando descobriram que o professor era soropositivo.Para Tereza Dantas, além do aspecto físico, a banalização da doença tem dificultado a adesão dos pacientes. “Uma coisa é tratar uma pessoa que já ficou doente, que já precisou se internar, porque ela viu como é o sofrimento. Outra coisa é convencer o paciente, até então saudável, que nunca manifestou qualquer sintoma. As pessoas se esqueceram que a AIDS ainda mata”.Genotipagem é realizada no Giselda O teste de genotipagem permite identificar a sensibilidade aos medicamentos, conforme o conjunto de mutações ocorridas. No Rio Grande do Norte, o responsável pelo exame é o médico infectologista do Hospital Giselda Trigueiro, Eugênio França. “No Brasil, nós oferecemos a genotipagem pós-tratamento, que faz o teste depois de um período que o paciente já está usando o medicamento. A genotipagem pré-tratamento só está disponível para crianças aqui no país. Antes de iniciar o ciclo de remédios, faz-se o exame para saber logo quais os que não vão ser eficientes”, explicou. Segundo a médica infectologista Tereza Dantas, os medicamentos não podem matar o vírus, mas servem para inibir a sua multiplicação. Hoje, já existem mais de vinte remédios para tratar a AIDS. Eles atuam em quatro vias diferentes para inibir a reprodução do vírus, seja impedindo a ligação dele à célula, ou atuando diretamente na reprodução genética.Eugênio França explica que o HIV é chamado cientificamente de lentivírus, devido à sua lenta ação degenerativa. “O período de incubação do vírus é muito grande. Alguns pacientes já têm o HIV há 20 anos e ainda não manifestaram a doença. Existe também a janela imunológica ou período de soroconversão, que é o tempo de cerca de três meses, desde a entrada do vírus até o aparecimento do primeiro anticorpo”, explicou.Mas, com ou sem medicamentos, o consenso geral entre os especialistas é de que o melhor tratamento ainda é a prevenção, já que a vacina ainda não existe, e os remédios propõem o controle, mas não a cura da doença. “Tem que ser uma educação continuada. Usar preservativo na hora de fazer sexo, fazer exames regulares para detectar o vírus ainda no início e utilizar sempre sangue triado na hora das transfusões”, advertiu.Há ainda aqueles que não fazem o tratamento da forma adequada porque acham que não vale a pena enfrentar o sofrimento. Mas para eles, Ricardo deixa a mensagem: “Três ideais norteiam a sobrevivência nesse caso: lutar pela vida, acreditar nos sonhos e tomar os medicamentos. Eu vou viver o tempo que Deus me permitir, mas preciso dar qualidade para esse tempo”. Doença não tem sintomas própriosO HIV é um parasita que se acopla às células do sistema imunológico do hospedeiro para poder sobreviver. Ao se ligar no receptor do tipo CD4 dos linfócitos, macrófagos e algumas células do intestino e do cérebro, o vírus passa a dominar a célula hospedeira que, ou explode devido ao grande número de vírus que nascem, ou são atacadas pelas outras células de defesa do organismo.Por isso, a Aids não é uma doença com sintomas próprios, embora algumas pessoas podem apresentar sintomas iniciais como febre persistente, calafrios, dor de cabeça, dor de garganta, dores musculares, manchas na pele, nódulos embaixo do braço, no pescoço ou na virilha. A ação principal do vírus deixa o portador suscetível a outras doenças. São as chamadas infecções oportunistas, que se manifestam de forma diferente em pessoas com o HIV: tuberculose, pneumonia, alguns tipos de câncer, candidíase e infecções do sistema nervoso (toxoplasmose e as meningites, por exemplo).Portador do vírus vira educador socialUma das saídas encontrada por Ricardo foi participar de movimentos sociais. O educador social se especializou em HIV e AIDS pelo Ministério da Saúde, para ficar mais próximo do assunto e, com isso, ajudar outras pessoas que enfrentam o mesmo problema. “Foi um choque quando eu descobri que estava com o vírus, eu vi meus sonhos morrerem. Na época, a gente ainda tinha o pensamento de que poderia morrer a qualquer momento, porque não tinham medicamentos disponíveis. Eu era um moleque ainda, não sabia como lidar com isso, mas resolvi contar para a família. A casa se desestruturou, eu tive que assumir minha homossexualidade junto com isso e foi difícil para administrar. Eu só vim entender mesmo a doença uns quatro anos depois e vi a necessidade de alguém que educasse as outras pessoas quanto a isso”, contou.Hoje, ele é um dos integrantes do Grupo Diaconia, uma Organização não-governamental que, dentre outras ações, trabalha com pessoas infectadas pelo vírus HIV. Um dos projetos é o “Amigos Positivos”, formado por pessoas que se uniram para tratar das questões decorrentes de problemas da Aids. Trabalhando com aproximadamente 17 igrejas evangélicas em todo o Estado, Ricardo diz que o grupo nasceu também com intenção de fazer os trabalhos de acolhimento de pessoas infectadas, realizar oficinas, palestras e cursos de educação continuada, inclusive no interior do Estado.Em conjunto com os Amigos Positivos, o Grupo atua em duas outras frentes. Uma é um acompanhamento direto aos pacientes com HIV do Giselda Trigueiro. “Nós fazemos acompanhamento espiritual, psicológico e um trabalho social, levando kits de higiene com sabonete, pasta, shampoo, absorventes, aparelhos de barbear para os que precisam”, disse Ricardo. A outra é um trabalho de adesão medicamentosa, incentivando o portador a fazer o uso da medicação. A ONG é sustentada pelos projetos da matriz em Pernambuco e por doações.No que diz respeito a ações governamentais, a Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap) participa do Plano de Ações e Metas (PAM) do Governo Federal, que é uma Política de Financiamento das Ações de HIV/Aids e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs). Segundo Sônia Cristina Lins, coordenadora do Programa DST-Aids, o programa não executa diretamente as ações e a proposta é apoiar as ações realizadas pelos municípios. “Nós vamos onde estão os maiores índices da doença, como a população de gays, jovens, travestis. Trabalhamos em conjunto com vários movimentos sociais, dentre eles o das profissionais do sexo”, contou.Primeiro caso do RN foi em 1983O primeiro caso notificado no Rio Grande do Norte foi em 1983. Hoje, duas mil pessoas estão cadastradas para receber os medicamentos do Ministério da Saúde das duas unidades de referência existentes: o Hospital Giselda Trigueiro, em Natal, e o Hospital Rafael Fernandes, em Mossoró. A maior incidência dos casos é entre pessoas de 20 a 49 anos de idades.Em julho deste ano, 1.207 pacientes receberam os medicamentos no Giselda e 207, no Rafael Fernandes. A diferença de números se dá por causa de pessoas que mudaram de cidade ou faleceram e ainda não mudaram o cadastro, ou pelos pacientes que não estão mais indo buscar o medicamento. Por mês, 25 novas pessoas aderem ao tratamento no Estado. E O número de mulheres aumentou bastante nos últimos anos. Antes o volume era de vinte homens contaminados para uma mulher. Hoje, a proporção já está um para um. Segundo Sônia Cristina Lins, coordenadora do Programa DST-Aids da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesap), grande parte dos novos casos é representada pelas mulheres do lar. “E os casos estão aparecendo muito nas mulheres de família, casadas e que, muitas vezes, só tiveram o marido como parceiro sexual. É a vulnerabilidade da mulher diante da infidelidade do marido, do não uso de preservativos em relações instáveis”.A Sesap não notifica os casos de HIV, apenas os casos de AIDS. Ou seja, só quando o paciente apresenta os sintomas, é que a ocorrência entra no sistema. Desse modo, foram registrados de 2004 a 2008, 132 casos por ano, o que dá um total de 660 novas pessoas com sintomas da doença em cinco anos. Índice que diminuiu desde 1998, quando foram notificadas 176 pessoas doentes só neste ano.Como só existem duas unidades de referência para tratamento do HIV no Rio Grande do Norte, o paciente precisa se deslocar todos os meses até Mossoró ou Natal para conseguir o medicamento. Mas segundo Sônia Cristina, o Estado pretende construir hospitais de referência para tratamento do HIV em mais sete municípios do interior do estado.
Fonte:http://tribunadonorte.com.br/
domingo, 16 de agosto de 2009
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